Reale Jr. e Mario Prata

Entre os telefones que me poderiam ser úteis em Paris, numa folha de papel, estava o do Reali Jr.

- Qualquer problema em Paris, liga para o Reali. Tá lá há 25 anos, sabe tudo de Paris. Além de ser uma figura adorável.
Enquanto pude e não precisei, não procurei o Reali. Mesmo porque não o conhecia e nem sabia se ele me conhecia. Acontece que, um dia, eu precisei desesperadamente do Reali.
Quando eu disse para ele o meu problema, ele não acreditou. Mas o caso saía dos meus pés e caía nas mãos dele.
Foi o seguinte. Sei lá por que, mas toda a torcida hospedada no Meridien-Etoile ficou gripada logo que chegamos. Menos eu. Mas peguei frieira. Da braba. Partindo do princípio que desodorante tem álcool, comecei o meu tratamento por ali. Não, o desodorante não era francês. Não deu muito certo. A coisa progredia. Meu francês - foi nos primeiros dias - ainda era aquele do ginásio. Mas tinha um livrinho com as frases todas. Com a pronúncia e tudo. Estudei muito bem estudado e fui para a farmácia. A mocinha me olhou, deve ter achado que eu era belga - pelo sotaque -, olhou para os meus pés e falou uma frase imensa que, absolutamente, não estava nos meus planos. Disse, fazendo um movimento ritmado com os dedos perto do narizinho francês. É, ela achava que eu estava com chulé, que deve ser uma palavra francesa. Não apenas pela pronúncia.
Aquilo não ia dar certo. Eu ainda tentei:
- Fri-eeeei-ra!

Depois em francês, acentuando o a final:
- Frieirá!
Ela trouxe uma meia elástica, pois deve ter achado que eu estava com frio nos pés. Agradeci em latim e fui embora, procurar outra farmácia com uma mocinha mais culta.
Na segunda farmácia me venderam um cortador de unhas, um curativo para calos, duas lixas e um pozinho que eu presumi fosse para chulé.
A coisa tava feia, sem as meias da vovó Maria. Queimava. Carne viva.
No meu Larousse de bolso, nada de frieira. Nem a Magdala, da Stella Barros, sabia como era frieira em francês. Dia seguinte tinha jogo em Nantes. Ia ter de andar e muito. Foi quando me lembrei do Reali. Liguei, ele mesmo atendeu. Nos apresentamos, um ficou levantando a bola do outro, os dois ficaram reclamando que estávamos trabalhando demais, os dois concordaram que o Brasil não ia longe e foi chegando a hora de eu entrar no assunto. Os preâmbulos todos já estavam esgotados. Expliquei o meu problema, totalmente sem jeito. Houve um silêncio profundo, penalizado e respeitoso do lado de lá de Paris. Quase achei que tinha caído a linha. Ele:
- Estava pensando aqui, sabe que eu nunca soube de um caso de frieira em Paris? Acho que francês não tem frieira, não. Primeiro Mundo tem essas vantagens.
- Então a frieira é brasileira mesmo. Trouxe ela de avião. Trata-se de uma frieira de primeira classe, executiva. Talvez um bom banho, de imersão dos pés em vinho branco francês.
O Reali disse, então, que lembrou lá de um super-Larousse que tinha tudo. Mas ele achava muito difícil ter frieira. Duvido, foi a última palavra dele antes de sair do ar. Deu um tempo, voltou e eu escutava ele virando as páginas, com pressa, sabendo que a minha frieira não podia esperar em pé.
- Tem!!! É incrível, tem! Veja você, há 25 anos na França e nunca soube que frieira é engerule.
- Engerule?
Ele corrigiu a minha pronúncia, desejou boa sorte, bom trabalho e marcamos um delicioso almoço para o dia seguinte. Meu pé ia ficar bom, é claro.
No dicionário do Reali tinha frieira. Eu tinha frieira, mas na farmácia não tinha remédio pra frieira. 

Definitivamente, francês não tem frieira.
Dias depois, contra o Brasil, provariam que não têm frieira, mas têm uma bruta e solidária frieza. E, contra ela, um só Valium não valeu nada.

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